29 de agosto de 2011

Mariquinha teimosa

Escrito por Rolando Boldrin   

Teimosia e estupidez são gêmeos, já se dizia na antiguidade. E só vendo no causo do Rolando Boldrin como isso é uma verdade.


Não tinha cumádi mais teimosa do que a Mariquinha. Era dia de são João no arraiá, e na hora de estourar os foguetes em  homenagem ao santo sucedeu esse causo.

Todo mundo sabe que o jeito de soltar foguete é chegar o fogo na pólvora e, quando acende, a gente solta logo. Assim o dito-cujo voa pelos ares para dali a alguns segundos explodir. Pois bem: aí é que entra a teimosia da Mariquinha. Quando todos esperavam que ela soltasse a vareta, ela não fez isso. Aí o povaréu se apavorou:

Todos (gritando) – Sorta, Mariquinha! Sorta a vareta! Sorta logo que o rojão vai explodir!

Mariquinha – Num sorto coisa  nenhuma! A festa é aqui embaixo! Como é que o foguete vai estourar lá em riba??!!

E o foguete: chiiiiiiii...

Todos (apavorados) – Sorta logo, muié teimosa! Essa coisa vai explodir!

Mariquinha – Ah, mas num sorto mêmo. Quero vê ele arrebentá é aqui embaixo! E não deu outra: foi aquela explosão. Morreu a Mariquinha teimosa. Lá vai de tardinha o enterro rua abaixo, pro rumo do cemitério perto do córrego. Ao passar em cima da ponte, não é que o Malaquias tropeça e derruba o caixão na água?! Foi aquele deus-nos-acuda. Todo mundo correu córrego abaixo pra resgatar a Mariquinha teimosa. Menos o cumpádi Malaquias, que, para espanto de todos, garrou a subir rio acima.

Todos – Êh, cumpádi, o rio corre é para baixo! Cumé que ocê tá procurando rio acima?!

Malaquias (na sua lógica) – Disso eu sei, ué! Mas do jeito que a cumádi era teimosa...

Disponível em: <http://www.almanaquebrasil.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9820:mariquinha-teimosa&catid=12996:causos-de-rolando-boldrin&Itemid=222>. Acesso em: 29 ago. 2011

Para conhecer outros causos escritos por Rolando Boldrin, acesse a guia DIVERSÃO no sítio do ALMANAQUE BRASIL (logo abaixo, você encontra um atalho).

3 de agosto de 2011

Meu ideal seria escrever...


Rubem Braga

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

A crônica acima foi extraída do livro "A traição das elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág. 91.

Disponível em: <http://www.releituras.com/rubembraga_meuideal.asp>. Acesso em: 3 ago. 2011.