6 de dezembro de 2011

Canto de Natal


Manuel Bandeira

O nosso menino
Nasceu em Belém.
Nasceu tão-somente
Para querer bem.

Nasceu sobre as palhas
O nosso menino.
Mas a mãe sabia
Que ele era divino.

Vem para sofrer
A morte na cruz,
O nosso menino.
Seu nome é Jesus.

Por nós ele aceita
O humano destino:
Louvemos a glória
De Jesus menino.















A poesia acima foi extraída da "
Antologia Poética - Manuel Bandeira", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2001, pág. 137.











Disponível em: <http://www.releituras.com/mbandeira_canto.asp>. Acesso em 06 dez. 2011.

10 de novembro de 2011

USP - 2011 (pra quem vê de fora)

de Novembro de 2011 às 16:04
Somos alunos da ECA-USP e visto a falta de imparcialidade da mídia com referência aos últimos acontecimentos ocorridos dentro da Universidade de São Paulo, cremos ser importante divulgar o cenário real do que realmente se passa na USP. Alguns fatos importantes que gostaríamos de mostrar:

- O incidente do dia 27/10/11, quando 3 alunos foram pegos portando maconha, NÃO foi o ponto de partida das reivindicações estudantis. Aquele foi o estopim para insatisfações já existentes.

- Portanto, gostaríamos de explicitar que a legalização da maconha, seja dentro da Cidade Universitária ou em qualquer espaço público, não é uma reivindicação estudantil. Alguns grupos até estão discutindo essa questão, mas ela NÃO entra na pauta de discussões que estamos tendo na USP.

- Os alunos da USP NÃO são uma unidade. Dentro da Universidade há diversas unidades (FFLCH, FEA, Poli, etc.) e, dentro de cada unidade, grupos com diferentes opiniões. Por isso não se deve generalizar atitudes de minorias para uma universidade inteira. O que estamos fazendo, isso no geral, é sim discutir a situação atual em que se encontra a Universidade.

- O Movimento Estudantil, responsável pelos eventos recentes, NÃO é uma organização e tampouco possui membros fixos. Cada ação é deliberada em assembleia por alunos cuja presença é facultativa. O que há é uma liderança desse movimento, composta principalmente por membros do DCE (Diretório Central dos Estudantes) e dos CAs (Centros Acadêmicos) de cada unidade. Alguns são ligados a partidos políticos, outros não.

- Portanto, os meios pelos quais o Movimento Estudantil se mostra (invasões, pixações, etc.) não são decisão de maiorias e, portanto, são passíveis de reprovação. Seus fins (ou seja, os pontos reais que são discutidos), no entanto, têm adesão muito maior, com 3000 alunos na assembleia do dia 08/11.

- Apesar de reprovar os meio usados pelo Movimento Estudantil (invasões, depredação), não podemos desligitimar as reivindicações feitas por esses 3000 alunos. Os fatos não podem ser resumidos a uma atitude de uma parcela muito pequena dos universitários.

Sabendo do que esse movimento NÃO se trata, seguem suas reinvidicações: 

DISCUSSÃO DO CONVÊNIO PM-USP / MODELOS DE SEGURANÇA NA USP

A reivindicação estudantil não é: PM FORA DO CAMPUS, mas antes SEGURANÇA DENTRO DO CAMPUS. Os estudantes crêem na relação dessas reivindicações por três motivos:

A PM não é o melhor instrumento para aumentar a segurança, pois a falta de segurança da Cidade Universitária se deve, entre outros fatores, a um planejamento urbanístico antiquado, gerando grandes vazios. Iluminação apropriada, política preventiva de segurança e abertura do campus à populacão (gerando maior circulação de pessoas) seriam mais efetivas. Mas, acima de tudo...

A Guarda Universitária deve ser responsável pela segurança da universidade. Essa guarda já existe, mas está completamente sucateada. Falta contingente, treinamento, equipamento e uma legislação amparando sua atuação. Seria muito mais razoável aprimorá-la a permitir a PM no campus, principalmente porque...

A PM é instrumento de poder do Estado de São Paulo sobre a USP, que é uma autarquia e, como tal, deveria ter autonomia administrativa. O conceito de Universidade pressupõe a supremacia da ciência, sem submissão a interesses políticos e econômicos. A eleição indireta para reitor, com seleção pessoal por parte do governador do Estado, ilustra essa submissão. O atual reitor João Grandino Rodas, por exemplo, era homem forte do governo Serra antes de assumir o cargo.

POSTURA MAIS TRANSPARENTE DO REITOR RODAS / FIM DA PERSEGUIÇÃO AOS ALUNOS

Antes de tudo, independentemente de questões ideológicas, Rodas está sendo investigado pelo Ministério Público de São Paulo por corrupção, sob acusação de envolvimento em escândalos como nomeação a cargos públicos sem concurso (inclusive do filho de Suely Vilela, reitora anterior a Rodas), criação de cargos de Pró-Reitor Adjunto sem previsão orçamentária e autorização legal, e outros.

No mais, suas decisões são contrárias à autonomia administrativa que é direito de toda universidade. Depois de declarar-se a favor da privatização da universidade pública, suspendeu salários em ocasiões de greve, anunciou a demissão em massa de 270 funcionários e, principalmente, moveu processos contra alunos e funcionários envolvidos em protestos políticos.

Rodas, em suma: foi eleito indiretamente, faz uma gestão corrupta e destrói a autonomia universitária.

Você pode estar pensando…

MAS E O ALUNO MORTO NO ESTACIONAMENTO DA FEA-USP, ENTRE OUTRAS OCORRÊNCIAS?
Sobre o caso específico, a PM fazia blitz dentro da Cidade Universitária na noite do assassinato. Ainda é bom lembrar que a presença da PM já vinha se intensificando desde sua primeira entrada na USP, em Junho/2009 (entrada permitida por Rodas, então braço-direito de Serra). Mesmo assim, ela não alterou o número de ocorrências nesse período comparado com o período anterior a 2009. Ao contrário, iniciou um policiamento ostensivo, regularmente enquadrando alunos, mesmo em unidades nas quais mais estudantes apoiam sua presença, como Poli e FEA.

MAS E A DIMINUIÇÃO DE 60% NA CRIMINALIDADE APÓS O CONVÊNIO USP-PM?
São dados corretos. Porém a estatística mostra que esta variação não está fora da variação anual na taxa de ocorrências dentro do campus ( http://bit.ly/sXlp0U ). A PM, portanto, não causou diminuição real da criminalidade na USP antes ou depois do convênio. Lembre-se: ela já estava presente no início do ano, quando a criminalidade disparou.

MAS, AFINAL, PARA QUE SERVE A TAL AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA?
Serve para que a Universidade possa cumprir suas funções da melhor maneira possível. De maneira simplista, são elas:
- Melhorar a sociedade com pesquisas científicas, sem depender de retorno financeiro imediato. 
- Formar cidadãos com um verdadeiro senso crítico, pois mera especialização profissional é papel de cursos técnicos e de tecnologia.

Importante: autonomia universitária total não existe. O dinheiro vem sim do Governo, do contribuinte, porém a autonomia universitária não serve para tirar responsabilidades da Universidade, mas sim para que ela possa cumprir essas responsabilidades melhor.

COMO ISSO ME AFETA? POR QUE EU DEVERIA APOIA-LOS?
As lutas que estão ocorrendo na USP são localizadas, mas tratam de temas GLOBAIS. São duas bandeiras: SEGURANÇA e CORRUPÇÃO, e acreditamos que opiniões sobre elas não sejam tão divergentes. Alguém apoia a corrupção? Alguem é contra segurança? 

O que você acha mais sensato:
- Rechaçar reivindicações justas por conta de depredações e atos reprováveis de uma minoria, ou;
- Aderir a essas mesmas reivindicações, propondo ações mais efetivas?

Você tem a liberdade de escolher, contra-argumentar ou mesmo ignorar.
Mas lembre-se de que liberdade só existe com esclarecimento.
Esperamos ter contribuído para isso.

Se você se interessa pelo assunto, pode começar lendo este depoimento: http://on.fb.me/szJwJt 

Bárbara Doro Zachi
Jannerson Xavier Borges

PS: Já que a desconfiança é com a mídia, evitamos linkar material de qualquer veículo.



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‎"Será que não termina nunca? Porque desde que a gente se conhece, a cada par de ano estamos nós nas ruas, nas passeatas, nas assembleias, na repetição interminável do autoritarismo, da repressão, da ausência de diálogo.
...
Essa sensação de que é interminável: de que nós não fazemos outra coisa senão defender a Universidade, defender a Educação, defender a Cultura, defender a Democracia nesse p
aís desde sempre.
[...]
(Para os estudantes da USP:) que você se sintam parte de uma longa História! Uma História que não começa com vocês. Provavelmente não terminará com vocês. E passará a seus filhos e depois a seus netos. Se este país continuar sempre dessa maneira em que a cada manifestação de discordância, de oposição e de cidadania, a resposta for a polícia.
O que há de inacreditável dessa vez, como aliás em 2007, é que, em uma única gestão, a Reitoria tenha conseguido trazer duas vezes a polícia para dentro do Campus. É muita coisa para uma história só. Numa única gestão. Não é possível uma coisa dessa.
É preciso também levar em conta o modo como a imagem da Universidade Pública está sendo distorcida nos meios de comunicação nesses últimos dias: a ideia de que nós não representamos a Universidade Pública, nem os interesses da Universidade Pública, nem os direitos da Universidade Pública, mas que nós queremos destruir a Universidade Pública e impedir que aqueles que querem fazer pesquisa, aqueles que querm lecionar, aqueles que querem estudar possam realizar os seus objetivos porque nós estamos aqui para impedir.
A ideia é uma construção lenta, gradual e segura da imagem de que aqueles que se colocam na defesa da Universidade Pública apareçam como aqueles que querem destruí-la e depredá-la."

Professora Marilena Chauí (http://www.fflch.usp.br/df/site/professores/chaui.php), em ato contra a presença da PM na USP, realizado no dia 16/06/09 no anfiteatro da Geografia-FFLCH.
YOUTUBE - Marilena Chauí :: Contra a PM na USP :: 16/06/09

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Só quem fez movimento estudantil é que sabe a importância desta imagem. Só quem fez movimento estudantil na USP emociona-se com essa imagem. Só quem fez movimento estudantil na USP e se formou na FFLCH sabe quão caluniosa é essa história de que o movimento é composto por playboys e garotos mimados. Só quem, sendo trabalhador, fez movimento estudantil, participou de greves e mesmo assim deu conta d
e sua vida acadêmica sabe o quanto ofende quando dizem que o que está acontecendo na USP é coisa de vagabundos. Parem de reproduzir essa bobagem que o PIG diz sobre a maconha e outras distorções. Informem-se. Só quem já viveu o debate dentro da USP sabe que o que chega pela tela da tv globo e pela VEJA não é nada do que realmente acontece por lá. Sim, pelas bobagens que tenho lido por aí, só quem viveu algo semelhante que esses estudantes estão vivendo entende quão importante é uma imagem como esta. Ainda bem que eu sei! (Sumaya - @_sumaya)



Foto de http://www.facebook.com/bwstefano

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20 de setembro de 2011

Algumas lendas rurais de São Paulo


"Quando uma canoa desce o rio Tietê, sem nenhum barqueiro a remá-la, costuma-se dizer que ela está levando as almas de antigos bandeirantes falecidos nesse rio (...) ninguém se atreve a pegar a canoa para si, pois fica valendo a crença de que os espíritos estão dentro da canoa e eles não iriam aceitar que ela lhes fosse tomada."


"Dizem que de madrugada, nas ruas dos canaviais de Dois Córregos, às vezes aparece o Caminhão-Fantasma, de farol-alto, que trafega sem motorista. Os caminhoneiros que já cruzaram com esse veículo falam que primeiramente só se vê o farol, e quando eles se encostam no canavial para dar passagem, o Caminhão-Fantasma se apaga completamente, desaparecendo como por encanto."




"Em uma das pequenas grutas situadas no sopé da Pedra Branca mora o Unhudo. Dizem que suas unhas - ou garras - são realmente muito grandes, que ele tem cerca de dois metros de altura, que possui cabelos compridos e que usa um chapéu de palha cujas abas já estão desfiadas pelo tempo. Mas o Unhudo não pode ser considerado um ser humano. Trata-se de uma entidade fantástica, pois quem o viu garante que por trás das roupas esfarrapadas está um couro seco, já que seu corpo não é encarnado. Desse modo, segundo se comenta, o Unhudo seria um morto vivo. Quando passa alguma boiada perto da Pedra Branca, o Unhudo se esconde atrás de um tronco de árvore e fica repetindo o aboio que os boiadeiros costumam dizer com sua fala cantando pra tocar o boi. Assim, se o boiadeiro grita ‘ô boi!’, o Unhudo repete ‘ô boi!’, como se fosse um eco. (...) ele não aceita que as pessoas colham jabuticabas silvestres e nem orquídeas naquele local. E toda pessoa que se atreve a desobedecê-lo corre o risco de levar um tapa que costuma arremessar o indivíduo para o outro lado do rio Tietê. E foi mais ou menos assim que aconteceu com ‘Zé’ Ramos que morava naquele baixão de serra com a sua família. De acordo com o depoimento de seu filho ‘Neguito’ Ramos (hoje ele reside na Coloninha da Paulista, em Dois Córregos), certa vez, no início do século XX, ‘Zé’ Ramos se enfiou na mata da Pedra Branca para catar jabuticabas silvestres. E ele já estava trepado em uma jabuticabeira, colhendo as frutas, quando ouviu uma voz rouquenha que lhe disse:
-Moço, essa fruteira 'tá reservada pra mim
Percebendo que não estava diante de um ser humano, e sim de uma entidade perigosa, ‘Zé’ Ramos sacou sua garrucha e disparou dois tiros contra o peito do Unhudo. As balas, entretanto, passaram pela entidade sem fazer nenhum dano, e naquele mesmo instante ‘Zé’ Ramos perdeu os sentidos, certamente atingido por um tapa do ‘morto- vivo’.
Durante dois dias, os filhos de ‘Zé’ Ramos estiveram a procurá-lo nas proximidades da Pedra Branca, mas ele só foi encontrado no bairro das Contendas, na beira do rio Tietê, um dia depois de haver desmaiado. De acordo com o que ‘Zé’ Ramos contou para a sua família e amigos, após acordar do tapa ele ficou vagando sem rumo pela mata, muito embora toda aquela região lhe fosse bastante familiar. E depois disso esse assunto passou a ser evitado em sua casa, pois sempre que alguém citava o Unhudo, ‘Zé’ Ramos ficava muito emocionado e não conseguia conter as lágrimas.
(...) Existe uma versão, sobre a origem dessa lenda que envolve a figura do major Cesário Ribeiro de Barros - antigo dono da fazenda onde se situa a Pedra Branca.
De acordo com essa versão, o major, cujo enterro foi feito em Dois Córregos, teve seu corpo desenterrado pelo coveiro, tempos depois, para um serviço de rotina do cemitério e então se descobriu que ele estava intacto - nenhum verme o havia comido. Para que o corpo se desfizesse ele foi colocado no campanário da igreja matriz, mas mesmo assim não houve a putrefação. Por esse motivo o povo passou a dizer que o Unhudo seria a alma penada do major Cesário, pois conforme se acreditava, o espírito de uma pessoa falecida jamais teria paz enquanto o corpo não se deteriorasse."






"O negócio do Unhudo eu tinha 15 anos. Quando ele pegou o sr. Zé Ramos conhecido nosso véio, ele tava com 50 e poucos anos. Aí foi em quatro cavaleiros, domingo depois do almoço, de tarde já 4 horas, mas era mato aquele tempo, tinha mato, hoje tem pouco mato. Aí amansou o cavalo, saiu um pra lá, outro pra cá, três, e ele saiu pra cá, achou um baixinho dava pra ele subir, na fruiteira, aí o bicho chegou. Couro mais chapéu de palha, bota, mas só osso sabe? Carne igual nós, não tem o Unhudo. Faz chop, chop... (faz gesto com a mão de punho fechado no peito):
- Ô moço desce daí, aqui é meu. Pra quem você pediu pra apanhar fruita aí? - ele falou
- Ah eu não sabia de nada.
- Aqui é meu - bateu no couro: chop, chop, chop (faz gesto de punho fechado batendo no peito)
O seu Zé falou : 
- Ih... Hoje tá danado.
Aí o seu Zé intimidou e ele falou:
- Então eu vou de encontro.
E aí pegou na fruiteira e foi subindo sabe?
O seu Zé tinha uma chumbeirinha pequena, eu tenho em casa. Ai seu Zé arrancou e atirou nele, mas não viu mais nada. Aí ele caiu, falou pro pai que doeu assim, mas não sabe se o bicho deu um tapa ou se ele caiu no chão, ele contou certo, mas não chamou nem os companheiros, não gritou, sumiu o sentido. Aí ele agarrou pra lá, pro outro lado do Tietê tinha o picadão e lá ele subiu. Ai lá ele sentou e dormiu.
Mas não tinha morador muito aquele tempo, só tinha dois no meu tempo sabe, na beira do Tietê, mas eles não vinha pra cá, vinha pra Barra, Sta. Maria sabe? Por lá ele dormiu, Quando foi segunda–feira ele acordou, tinha um reloginho de bolso, olhou no relógio era onze e meia do dia. Aí ele começou a rezar, rezar, pessoar velho sabe rezar. Aí o sentido veio vindo. Ele morava pra cá do Morro Alto, onde eu morava.
Aí ele veio e chegou na casa dele eram seis horas da tarde, com fome. Aí eu conheci a dona Paula mulher dele e ela:
- O que aconteceu Zé?
Mas ele já tava meio sabe, não contou, não contou não.
No dia seguinte ele contou pra ela, pra dona Paula que o bicho tinha pegado ele e atrapalhou a idéia, não gritou nem os companheiros. E os companheiros gritaram, tinha onça aquele tempo sabe, onça pintada. Ah comeu o véio! E no caminho sentado rasgou tudo a roupa, tudo e aí ele olhou no relógio eram onze e meia e aí ele começou a rezar, rezar e o sentido veio vindo sabe, aí ele veio, achou a casa dele veio pra cá, pra casa.
Aí ele contou pro pai na mesa assim, mas eu tinha 15 anos tava perto. O que ele contou pro meu pai eu conto pro cês aqui, só, a prosa é essa mais nada.
Assombrou meu pai também. Ele morou na beira do Tietê dois anos, é meu pai era carreiro de boi e atrasou na venda. Meia-noite. E logo o bicho:
- Ue, Ue, ...
E o medo, tinha medo, cresceu o cabelo no chapéu, mas não via o bicho tava muito escuro. Aí chegou em casa e contou pra mãe. E a mãe outro dia cedo, era molecada, dois irmão e eu.
- Que bicho é esse?
- É o tar de corpo seco. Mora lá na Pedra Branca.
Mas não viu ele, agachava pra ver, mas tava muito escuro. (...) Eu caçava lá, eu sou caçador, eu olhava no pé do pau pra ver se ele tava lá. Eu olhava cismado, a gente vem e trabalha cismado.
(...) Com o seu Zé Ramos foi de tarde. Era uma fruiteirinha baixinha, dava umas quatro latas de querosene, ele começou e o bicho chegou, bateu no peito:
- Com ordem de quem tá apanhando fruita aí?
E o seu Zé não sabia quem era.
- Pra pegar tem que pedir pra mim.
O seu Zé não sabia, ele foi subindo na fruiteira e o seu Zé arrancou a chumbeira e fez tá, tá (tiros) não viu mais nada. Falou pro pai que caiu. Aí ele veio aqui e não sabe se o bicho deu um tapa ou ele caiu no chão. Sumiu o sentido naquela hora. Os companheiros precuraram ele, mas falou, tinha onça aquele tempo, comeu o véio né? E ele tava vivo, dormindo, o seu Zé Ramos. É só isso a prosa mais nada."










O conteúdo acima foi retirado da dissertação de Tamara de Souza Brandão Guaraldo.


Na dissertação da Tamara Guaraldo, você encontra as fontes dos trechos citados, uma foto do major Cesário Ribeiro de Barros, uma matéria de jornal que registra um dos ataques do Unhudo e muito mais sobre a lenda do unhudo e sobre a cultura folclórica de Dois Córregos.

Para ler a dissertação, acesse o seguinte endereço:
Disponível em: http://www.faac.unesp.br/posgraduacao/Pos_Comunicacao/pdfs/tamara.pdf. Acesso em: 20 set. 2011.



Para assistir a um vídeo sobre a lenda do unhudo, acesse o seguinte endereço:
 Disponível em: http://g1.globo.com/videos/sao-paulo/v/lenda-do-unhudo-e-usada-para-preservacao-da-natureza-no-interior-do-estado/1633346/#/Todos%20os%20v%C3%ADdeos/page/1. Acesso em: 20 set. 2011.









Fonte da imagem: http://www.doiscorregos.sp.gov.br/


29 de agosto de 2011

Mariquinha teimosa

Escrito por Rolando Boldrin   

Teimosia e estupidez são gêmeos, já se dizia na antiguidade. E só vendo no causo do Rolando Boldrin como isso é uma verdade.


Não tinha cumádi mais teimosa do que a Mariquinha. Era dia de são João no arraiá, e na hora de estourar os foguetes em  homenagem ao santo sucedeu esse causo.

Todo mundo sabe que o jeito de soltar foguete é chegar o fogo na pólvora e, quando acende, a gente solta logo. Assim o dito-cujo voa pelos ares para dali a alguns segundos explodir. Pois bem: aí é que entra a teimosia da Mariquinha. Quando todos esperavam que ela soltasse a vareta, ela não fez isso. Aí o povaréu se apavorou:

Todos (gritando) – Sorta, Mariquinha! Sorta a vareta! Sorta logo que o rojão vai explodir!

Mariquinha – Num sorto coisa  nenhuma! A festa é aqui embaixo! Como é que o foguete vai estourar lá em riba??!!

E o foguete: chiiiiiiii...

Todos (apavorados) – Sorta logo, muié teimosa! Essa coisa vai explodir!

Mariquinha – Ah, mas num sorto mêmo. Quero vê ele arrebentá é aqui embaixo! E não deu outra: foi aquela explosão. Morreu a Mariquinha teimosa. Lá vai de tardinha o enterro rua abaixo, pro rumo do cemitério perto do córrego. Ao passar em cima da ponte, não é que o Malaquias tropeça e derruba o caixão na água?! Foi aquele deus-nos-acuda. Todo mundo correu córrego abaixo pra resgatar a Mariquinha teimosa. Menos o cumpádi Malaquias, que, para espanto de todos, garrou a subir rio acima.

Todos – Êh, cumpádi, o rio corre é para baixo! Cumé que ocê tá procurando rio acima?!

Malaquias (na sua lógica) – Disso eu sei, ué! Mas do jeito que a cumádi era teimosa...

Disponível em: <http://www.almanaquebrasil.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9820:mariquinha-teimosa&catid=12996:causos-de-rolando-boldrin&Itemid=222>. Acesso em: 29 ago. 2011

Para conhecer outros causos escritos por Rolando Boldrin, acesse a guia DIVERSÃO no sítio do ALMANAQUE BRASIL (logo abaixo, você encontra um atalho).

3 de agosto de 2011

Meu ideal seria escrever...


Rubem Braga

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

A crônica acima foi extraída do livro "A traição das elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág. 91.

Disponível em: <http://www.releituras.com/rubembraga_meuideal.asp>. Acesso em: 3 ago. 2011.

25 de junho de 2011

Alavantu! Chã de Dama! Anarriê!

Baile na roça, de Mário Zan:


Quadrilha, de Mário Zan



Quadrilha marcada e falada, de Mário Zan (divertidíssimo!):




LAMARTINE BABO, na voz de

Carmem Miranda & Mário Reis 

 Isto é lá com Santo Antônio (1934)





Isto é Lá Com Santo Antônio
Autor: Lamartine Babo 
Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
São João disse que não!
São João disse que não!
Isto é lá com Santo Antônio!
Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
Matrimônio! Matrimônio!
Isto é lá com Santo Antônio!
Implorei a São João
Desse ao menos um cartão
Que eu levava a Santo Antônio
São João ficou zangado
São João só dá cartão
Com direito a batizado
Implorei a São João
Desse ao menos um cartão
Que eu levava a Santo Antônio
Matrimônio! Matrimônio!
Isso é lá com Santo Antônio!
São João não me atendendo
A São Pedro fui correndo
Nos portões do paraíso
Disse o velho num sorriso:
Minha gente, eu sou chaveiro!
Nunca fui casamenteiro!
São João não me atendendo
A São Pedro fui correndo
Nos portões do paraíso
Matrimônio! Matrimônio!
Isso é lá com Santo Antônio



Luiz Gonzaga -- Olha Pro Céu 

(de José Fernandes e Luiz Gonzaga)





Voltando a Mário Zan

Pula fogueira / Cai, cai balão / Capelinha de melão (1974)






Gírias do Norte (Jacinto Silva e Onildo Almeida) por Ceumar:












Alavantu!

Chã de dama!

Anarriê!


Fonte da imagem: clique aqui!


18 de maio de 2011

A Moça Tecelã

de Marina Colasanti


          Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.  E logo sentava-se ao tear.          

           Linha clara, para começar o dia.  Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

          Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

          Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.  Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido.  Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

          Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

          Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

          Nada lhe faltava.  Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas.  E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido.  Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete.  E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

          Tecer era tudo o que fazia.  Tecer era tudo o que queria fazer.

          Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

          Não esperou o dia seguinte.  Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado.  Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

          Nem precisou abrir.  O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

          Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

          E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu.  Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

          — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher.  E parecia justo, agora que eram dois.  Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

          Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
     — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou.  Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

          Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.  Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

          Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
          — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

          Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.  Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

          E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros.  E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

         Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

          Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

          A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar.  Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas.  Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

          Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara.  E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

2 de janeiro de 2011

Apólogo brasileiro sem véu de alegoria


Alcântara Machado

O trenzinho recebeu em Magoari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.


Trem misterioso. Noite fora, noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal e mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam :



— Vai pisar no inferno!



Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.



O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.



Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Magoarí.

* * *
Porém, aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Magoarí. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. 0 taioca guia dele só dava uma forga no bocejo para cuspir.



Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma coisa nele. Perguntou para o rapaz:


— O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?


O rapaz respondeu:


— Não sei: nós estamos no escuro.

— No escuro?

— É.

Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:

— Não tem luz?

Bocejo.

— Não tem.

Cuspada.
Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:
— O vagão está no escuro?



— Está.


De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim:


— Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!


E a luz não foi feita. Continuou berrando:

— Luz! Luz! Luz!

Só a escuridão respondia.

Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:

— Que é que há?

Baiano velho trovejou:

— Não tem luz!

Vozes concordaram:

— Pois não tem mesmo.

* * *
Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a coisa pega fogo.



Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:

— Ele é pobre como a gente.

Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos.

— Foguetes também?

— Foguetes também.
— Be-le-za!

Mas João Virgulino observou:
— Isso custa dinheiro.

— Que é que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magafere-chefe do matadouro de Magoarí, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:

— Dois quilos de lombo!
Cortou outro e disse:

— Quilo e meio de toicinho!

Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.

— Quantas reses, Zé Bento?

— Eu estou na quarta, Zé Bento!

Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando.

— Que é isso? Que é isso? É por causa da luz? Baiano velho respondeu :

— É por causa das trevas!

O chefe do trem suplicava:

— Calma ! Calma ! Eu arranjo umas velinhas.
João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.

— Aqui ainda tem uns três quilos de colchão mole!
0 chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às armas cidadãos! 0 taioquinha embrulhava no jornal a faca surrupiada na confusão.

Tocando a sineta o trem de Magoarí fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o chefe, muito pálido.
* * *
Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o título de um: Os passageiros no trem de Magoarí amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante da Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares.

Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:

— Qual a causa verdadeira do motim?

O homem respondeu:

— A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.

O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:

— Quem encabeçou o movimento?
Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:

— Quem encabeçou o movimento foi um cego!

Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.